A medicina que não vê pessoas

quinta-feira, 1 de setembro de 2016



Nos primeiros tempos do homem -e mesmo em certos recônditos lugares até hoje- o serviço de curar as pessoas estava reservado àqueles que detinham um poder espiritual. Bruxos, pajés, xamãs, curandeiros procuravam remover as desarmonias dos corpos para que estos ficassem aptos a serem utilizados pelas almas encarnadas neles e os espíritos que os animavam. Quer dizer, o objetivo da cura era facilitar a realização da alma das pessoas; permitir a estas poder cumprir com o roteiro de aprendizagem aqui na Terra, liberando o veículo do corpo para ele manifestar com a maior fidelidade possível os anseios da entidade espiritual.

Para o autêntico sanador o importante é a pessoa e não a doença. Por tanto, conhecer a pessoa era o passo mais importante para acertar no diagnóstico da enfermidade. E, dependendo das características da pessoa, de sua atividade, de sua situação pessoal e dos condicionamentos de seu entorno, em seguida poder precisar as ações da cura. 

Imhotep ("aquele que vem em paz”), foi um singular sábio, vizir do faraó e sumo sacerdote do deus sol Rá que viveu no Egito antigo (2655-2600 a.C) e é considerado o verdadeiro pai das ciências médicas. Ele alentou a criação dos primeiros hospitais do mundo, que eram santuários de cura onde médicos e sacerdotes cuidavam dos doentes, em corpo e alma. 

Aprendendo medicina  no Egito, na Escola dos Mistérios, Hipócrates de Cos, estimado, por sua vez, como o pai da medicina do mundo ocidental, dizia que aliviar a dor é obra divina. E é assim mesmo, porque a realização e a evolução da entidade espiritual que somos é vontade e objetivo da divindade maior conhecida como Deus, Grande Espírito, Ser, Natureza, Vida.

E assim era, até que um dia a caminhada do homem se bifurcou. Uns continuaram abraçar os legados da magia e outros partiram em procura de outras respostas naquilo que denominaram a ciência. E foi por este caminho da ciência em que, a medida que o homem ia se deslumbrando com as descobertas, foi se esquecendo do homem. O salto tecnológico da segunda metade do século 20 fez o restante e a medicina tradicional deu no que deu: uma ferramenta limitada em sua capacidade de cura, alheia às verdadeiras necessidades das pessoas.

Hoje, já no século 21, Dhruv Khullar, um jovem médico residente no Hospital Geral de Massachusetts e na Escola de Medicina de Harvard (Estados Unidos), relata uma experiência que da conta do extravio da medicina tradicional e dos próprios profissionais. Num artigo publicado no The New York Times, ele conta como os médicos, treinados para diagnosticar, perdem a capacidade de ver as pessoas. O seguinte é o texto completo:

"A sexta-feira à noite no pronto-socorro... 
... é exatamente como você imagina. Ela começa devagar: um homem de meia idade com pneumonia; uma idosa com infecção urinária que a faz delirar. Então chegam dois ataques cardíacos ao mesmo tempo, seguidos por um motorista bêbado com a cabeça sangrando e metade das costelas fraturada. À meia-noite, eis que chegam algumas moças embriagadas de uma festa de despedida de solteira que, podemos assumir, não correu como deveria.


Em meio ao caos, saio para cumprimentar um senhor magro, calmamente deitado em uma maca no corredor. Dou uma olhada em seu prontuário e exames anteriores: seu câncer de próstata resiste a vários tratamentos com quimioterapia; a coluna vertebral está tomada por tumores e ele tem vomitado tudo o que come ou bebe há semanas. Não consegue mexer o lado esquerdo do corpo depois de um derrame recente.

Ele dá um sorriso meio torto, mas simpático. "Não está sendo o melhor mês da minha vida" -me disse. "Sinto muito", respondo.

E passo a perguntar sobre os sintomas, quando começaram, o quanto pioraram. Ele me pergunta onde me formei e se eu tenho uma namorada. Pergunto se está tonto e se há sangue nas fezes. Ele diz que emigrou da Grécia há exatos 50 anos. Ganhara uma bolsa no MIT e estudou Engenharia Elétrica. Lá, conheceu a esposa – "uma cozinheira fantástica" – e abriu sua primeira empresa.

Agora, décadas depois, está sozinho em um pronto-socorro lotado, sexta à noite – a esposa morreu, os dois filhos estão no exterior. Uma enfermeira o visita uma vez por semana em casa para ajudá-lo com alguns medicamentos e para se certificar que os vários tubos saindo do seu corpo não estão infectados.

Eu continuo com meu interrogatório e pergunto quando seu intestino funcionou pela última vez. Aí, ele me olha direito aos meus olhos e, calmamente, me disse: "Filho, estou morrendo. Estou sozinho. Um dia você vai saber que uma boa morte é muito mais que a frequência do funcionamento do intestino"... E aí, eu paro.

Pessoas e não apenas pacientes
Em muitas coisas sou melhor hoje do que quando comecei minha jornada para me tornar um médico, há mais de dez anos. Mas acho que compreender os pacientes como pessoas e vê-los no contexto de suas vidas longas, belas e bagunçadas não é uma delas.

Os médicos são treinados, primeiro, para diagnosticar, tratar e curar – e segundo, para consolar, aliviar e acalmar. O resultado é uma perda lenta da visão, uma incapacidade de perceber quem e o que as pessoas são além de pacientes que vemos no hospital.


Quando adquirimos habilidades novas e mais técnicas, começamos a desvalorizar o que tínhamos antes de começar: compreensão, empatia, imaginação. Vemos os pacientes usando os trajes hospitalares e meias antiderrapante em vez de jeans e bonés de beisebol e treinamos nossos olhos para ver as assimetrias, erupções cutâneas e vasos sanguíneos, ao mesmo tempo em que os desprogramamos para perceber inseguranças, alegrias e frustrações.

Quando um grande volume de dados, o consenso e os algoritmos de tratamento permeiam a medicina, pequenos gestos de bondade e espontaneidade – o equivalente à atenção de segurar uma porta aberta e puxar uma cadeira – caem no esquecimento.

Mas, no final, todo tratamento é feito no nível do indivíduo. Podemos aprender mais sobre as preferências ou a tolerância ao risco do paciente particular quando explicamos os prós e os contras de um exame ou procedimento específico, mas uma compreensão robusta e holística precisa de uma apreciação mais profunda de "quem é essa pessoa com quem estou falando?".

Um olhar além do sofrimento
Na Grã-Bretanha, um corpo de pesquisa pequeno, mas cada vez mais significativo, descobriu que permitir que os pacientes contem suas histórias de vida é benéfico para ambos os lados. A pesquisa – focada principalmente em pacientes mais velhos e outros residentes de instituições de tratamento – sugere que fornecer um relato biográfico pode ajudá-los a compreender suas atuais necessidades e prioridades e permite que os médicos desenvolvam relacionamentos mais próximos com eles, pois podem ver com clareza "a pessoa por trás do paciente".

Recentemente, nos Estados Unidos, o Medicare (plano de saúde estatal para idosos)  começou a pagar os médicos para que falem com seus pacientes sobre o planejamento de fim de vida. Essas conversas permitem que os pacientes discutam e explorem suas preferências sobre uma série de intervenções médicas complexas, incluindo testes clínicos, transferências para a UTI, uso de respiração mecânica ou tubos de alimentação e o desejo de morrer em casa ou no hospital.

Essas discussões também podem se beneficiar de uma abordagem biográfica, na qual os pacientes seriam capazes de elaborar sobre o que é e o que sempre foi mais importante em suas vidas. Para melhor atendê-los, precisamos ver não só quem eles são, mas também quem eles eram, e em última análise, quem esperam se tornar no fim da vida.


O quanto seríamos melhores nos diagnósticos, prognósticos e curas se tivéssemos uma compreensão mais abrangente da pessoa à nossa frente? E se víssemos não só o sofrido senhor grego na maca do pronto-socorro, mas também o orgulhoso adolescente cruzando o Atlântico para começar uma nova vida, meio século atrás?

O pronto-socorro é, por natureza, uma arena projetada para a rapidez de raciocínio e ação. Certamente há outros lugares, momentos e circunstâncias mais propícios para se falar sobre metas de atendimento e incursionar pela vida dos pacientes.

Mesmo assim, há sempre um momento de graça e significado em que podemos ajudar os pacientes a encontrar no tempo que lhes resta, um momento que lhes remeta a uma época em que se sentiam mais vivos, mesmo que seja só uma conversa fugaz sobre comida grega e circuitos elétricos em um pronto socorro lotado, no final de uma noite de sexta-feira".

A experiência de Dhruv Khullar e, sobretudo, sua lúcida reflexão nos sinaliza que já está sendo o tempo para a ciência recuperar sua própria alma e se encontrar com a espiritualidade. Com certeza, resultará num casamento encantador, fazendo uma decisiva contribuição à transição planetária que irá a nos depositar numa outra dimensão humana, mais justa, mais amorosa, mais bela.    
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